September 22, 2009

O coração é uma pedra, um desejo e um fim



O barco já vai partir levando o errante. A mulher cuidava do filho que também trazia as primeiras marcas da sua própria errância. Ela vivia sua dúvida entre ficar e partir. Fazia para si roupas novas para o novo e desconhecido lugar. Sabia que lá os cremes, as bases, as roupas novas e as teorias teriam pouco valor e utensílio. Lá, nesse estranho e novo lugar, nenhum lógica, nenhuma regra do mundo que ficava atrás, teria lugar. Tudo era novo, tudo era velho.

Não havia como fugir, apenas olhar com olhos tristes e cheios de saudades a lua que ontem foi cheia e hoje mingua no eterno ciclo do interminável rio da existência. Nenhuma marca, tatuagem ou lembrança sobreveveria ao novo tempo que a errância empurra, inevitavelmente, para o além.

Enquanto preparava um pequeno e nutritivo alimento, os olhos da mulher deixavam lágrimas que eram as transparentes palavras do poeta, nas quais se podia ler todo amor que brotava do seu coração. Mas o coração é uma pedra, um desejo e um fim.

O errante não era o barco, nem os mares mas o vento violento que com seus raios iluminava o silêncio dos espaços eternos. Não havia lugar para lembranças, histórias ou objetos que pudessem um dia evocar a terra de onde se partiu.

O marido ainda cuidava de prover a casa de areia desmanchando-se no tempo. Ainda sugava a energia da terra esquálida que amamentou à exaustação os filhos, os novos errantes. O marido cumpria sua missão de ficar preso ao destino de ficar e ver a angústia da mulher secando o cabelo frente ao espelho do tempo.

Não havia mais primavera no final daquele inverno. Só flores de plásticos e planos de saúde top de linha. Nem uma vela, nenhum barco, nenhum destino. Tudo estava determinado, previsível, certo, lançado no livro caixa do cotidiano.

O errante caminhante acende uma estrela e segue o incerto caminho. Segue na incerteza da vida, na incerteza da estrela que brilha na tela do seu celular. Sorri de mansinho e sente a brisa fresca da noite alegrar seu sonho.

A mulher abraça o filho e chora baixinho. Não mais nascem flores nessa primavera.