November 02, 2009

Em memória de mim


Não queria usar a expressão “caro leitor” por considerá-la um tanto quanto vaga, indeterminada. Ainda assim, ou por isso mesmo, será usada de agora em diante.

O dia dois de novembro é feriado porque é o dia dos mortos. Para mim, desde pequeno, esse sempre foi um dia muito especial. Não só porque era um feriado, mas por um sentimento raro por conta daqueles que eram lembrandos. O dia dois de novembro é uma data com_e-morativa. É o dia que a sociedade tornou especial, um feriado, para exercer o enigmático feito de lembrar algo que não pode, ou não deve ser esquecido. Com o passar do tempo, dois de novembro é, cada vez mais, um dia de festas, buzinas, praias, comidas, filmes, barulhos e esquecimentos. Os mortos que descansem em paz.

Fazei isso em memória de mim. O pedido de Jesus é para não esquecê-lo. A vida é esse encontro enigmático que se dá no tempo. Passado, presente, futuro e esquecimento.

Responda-me, caro leitor, para não ficarmos nesse blá-blá-blá, o que podemos aprender com isso?

Podemos aprender a esquecer muitas coisas e a lembrar outras tantas. E, até mesmo, construir um futuro, se é que se pode construir um futuro. O tempo das nossas vidas, os diferentes tempos das nossas vidas, distribuidos pelas idades que vivemos, são intervalos de uma maravilhosa dádiva da natureza.

A expressão “maravilhosa dádiva da natureza” é um clichê, um chavão que está em quase todos os textos e declarações que traduzem encantamento de baixa categoria estética. Um pinguim sobre a bolsa Prada, vermelha, com detalhes dourados.

Mas, por favor, responda-me, aonde isso nos leva?

A lugar nenhum ou a muitos lugares. Depende, como sempre, caro leitor, da forma como encaramos as palavras e como jogamos com elas. Como atribuimos significados estranhos e fazemos montagens, cujos sentidos abrem mágicos mundos raros e desconhecidos.

Fazei isso em memória de mim
. No dia dois de novembro as pessoas, muitas pessoas, não todas, é claro, vão aos cemitérios e levam flores para seus parentes, para as pessoas amadas que morreram. Outras vão à praia, ao cinema, viajam no fim de semana prolongado e voltam, depois, aos seus cotidianos afazeres.

A vida é assim. Você só tem que preencher um formulário e enviar. Logo estará cadastrado e nunca mais será esquecido. Nem mesmo depois da sua morte. Até que alguém tenha a piedade de enviar uma cópia da declaração de óbito, continuarão chegando as cartas e os e-mails de aniversário, em sua defunta conta no gmail.

Isso, esse esquecimento, é uma mega esfera com um espelho digital, colada no reflexo da memória contemporâna, exibindo o banco de dados das pequenas lembranças, guardadas no youtube. Uma memória, uns dois gygabites de novembro digital, uma especulatrix imagética e fantasmática.

Responda-me, caro leitor, ainda é possível encontrar sentido nisso? Nessas metáforas gastas, nos delírios desses longos fins de semana regados a solidão e leituras, nas compras de depois de amanhã? O que se pode fazer com esse perpétuo fluxo do cotidiano?

Como lembrar os mortos?