January 16, 2013
O gerúndio e a gérbera
::
Otavio
E as gérberas, qual o papel delas na sua vida? Por que você não conta as tentativas frustradas de sonhar com as borboletas amarelas? Conte sobre as que nasceram na sala e depois fugiram quando se abriram janelas. Por que você não fala delas?
.
Imaginara que sua alma era o avatar de Florentino Ariza. Depois, por estúpido descuido, apagou o texto. Tentou lembrar-se daquilo que tinha escrito e não entendeu ter consumido longo tempo narrando o acidente imaginário. Era um exercício delirante, tentativa absurda de expressar o que de fato importava. Porém, no lugar de falar sobre o sofrimento da sua alma, ficou devaneando sobre um acidente imaginário.
.
Perguntou se suas dúvidas e angústias derivavam das dificuldades com o gerúndio. Desde muito cedo, as professoras de português sempre lhe pareceram uns demônios. Mais tarde, suas dificuldades cognitivas se acentuaram, sobretudo quando foi "sugestionado" a ler Heidegger. Depois disso, tornou sua escrita obscura, no sentido mais profundo da falta de compreensão.
.
Olhou o relógio e viu que já se tratava da uma e quinze, do horário de verão. Resolveu que não deveria sair de casa; melhor ficar e pensar em como escrever algumas palavras, por mero prazer. Suas dificuldades com o gerúndio não o tinham afastado de todo das fantasias de ser um escritor. Acreditava que, depois de tantas leituras, mesmo sem o gerúndio, sua literatura poderia encontrar um lugar para existir.
.
Afinal, chegara a hora de dizer algumas palavras, sobretudo as que não fizessem sentido; ficavam mais fáceis de ser entendidas. Viu nisso uma grande esperança e um futuro de nonsense pela frente.
.
Sentiu um pouco de sono, mas resistiu antes de bocejar. A noite tinha sido longa. Muitas lembranças ocuparam as horas mais silenciosas da madrugada. Lembrou a tenacidade de Florentino Ariza e a força do amor profundo e devastador de um homem por uma mulher. Foi mais ou menos a essa hora que decidiu resolver, de uma vez por todas, seus problemas com o gerúndio. Já passava das quatro e o silêncio era uma dádiva.
.
- Você está vendo?
- Vendo o quê?
- Ora, o gerúndio!
- Não, só as gérberas.
.
Ainda intrigado com suas dificuldades com a língua materna, leu no portal de notícias uma matéria intitulada "Rihanna com um chapeuzinho engraçado". A chamada era para o álbum, reproduzido por um portal de notícias, das fotos postadas por essa celebridade, no Facebook. Um ativo tóxico, como costumavam dizer nos corredores do mercado financeiro. Ele, o avatar de Florentino, parecia preso no trânsito caótico da segunda-feira de chuvas escandalosas.
.
Quando afinal alcançou o conforto do sofá, ouviu o repórter da tv fazer um divertido comentário sobre o bloco carnavalesco dos jornalistas brasilienses: "Nós que tanto nos amamos". Uma ironia sobre a guerra de egos, similar à dos políticos e à dos publicitários. Aliás, essas três "categorias" gozam de péssima fama, no que diz respeito ao caráter e à credibilidade daquilo que dizem, sentem e pensam, concluiu o repórter, no seu comentário.
.
O avatar delirante de Florentino Ariza buscava alívio para suas fantasias, enquanto imagens povoavam incessantemente sua mente. Subitamente, viu-se tomado pela maciez do sono. Um galo cantou n'algum lugar, mas o sono profundo já transportara o sonhador para outros bosques de gérberas.