March 26, 2010

Nem mesmo



Eu não poderia escrever os versos mais tristes essa noite.
Escrever, por exemplo, que meus olhos apagam com as estrelas,
que o Haiti chora milhares de mortes, negros como a noite e a dor de um dia raro e iluminado.

Não, não posso escrever os versos mais tristes essa noite.
É verdade, ela amou-me e ainda a amo loucamente.
Como não amar o sorriso, os movimentos do seu corpo, a poesia da sua existência? Pensar que nunca a tive. Sentir o que ainda sinto.

Nem mesmo poeta sou. Os versos não são meus, só a dor desses sentimentos.
O amor é essa chuva de risos ocultos que ouço zombando de mim.
Do ridículo de dizer que amo, que sonho com as mãos que acalentaram minha dor. Pensar que não posso vê-la caminhando na rua, comprando perfumes e flores.

De outro. Será de outro? E os meus beijos loucos, de vinho e sabor de filosofia? A cumplicidade íntima dos meus desejos, nas suas dobras mais escondidas, ainda ocupam a dor da minha desesperança.

Mas, ainda assim, seria impossível escrever os versos mais tristes essa noite.
Por uma razão simples. Ela ficaria ainda mais triste, sofreria ainda mais com palavras tristes, quando estivesse tomando vinho e rindo tristemente do meu amor.

Não, não posso nem mesmo escrever versos. Só mesmo sorrir, só mesmo sair pela noite
Sem estrelas, nas ruas desertas do Haiti.